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Praça XV de Novembro/Florianópolis/SC e sua Figueira centenária |
Não sei se sou eu, ou o próprio dia. Só sei que o destino vagando, sem aparato, despreocupado partilha comigo as suas benesses.
Da janela, onde estou, vejo a praça lá fora. Estranho, penso eu, não ter feito um dia, o que invejo agora. Sentar num banco, nesta mesma praça, e deixar o tempo escorrer vendo o burburinho da vida passando.
Enterrar o rosto na ensolarada tarde fagueira e sobranceira, e fazer brotar, espontaneamente, um monólogo interno com a vida - apaixonado escrutínio - perfeito texto da criação.
Apreciar o cortejo, faina diária constante, este ir e vir apressado das pessoas – singular evolução - evasão de cores derramando suas tintas, induzindo-nos à suavidade e subjugando-nos a enfeitar os parapeitos da alma inacabada.
Na revoada, na debandada dos pombos e no aroma misturado ao perfume das flores engalanadas, sentir a luxúria e a ternura presentes na natureza.
Espiar os rostos, as rugas e os sorrisos francos dos jogadores de dominó, curtidos pelo tempo, entrevendo a alegria sentida nestes doces momentos de desafio, que a vida lhes brinda, ainda.
Conforto gentil, mão divina, perpassa, poreja, agasalha, ilumina e gorjeia seus cantos de amor.
Lá fora, flautistas anônimos, em sintonia com este momento, deixam manar, verter, fluir através dos seus instrumentos, como carícias generosas e afinados sons que aliviam a tensão do tédio e da letargia imposta pelo improdutivo dia.
Deixo na morosidade do momento, impregnar-me pela serenidade dessa harmonia que ao meu espírito soergue e vai pelos desfiladeiros da mente transformando-se em infinita paz.
Sons fortes ou cristalinos, enflorados ou indefinidos, emprestando asas lilases ou, de quaisquer cores, não importa, o que vale é o atrevimento de dar saltos à imaginação.
Momento ímpar este, que nos permite deixar de lado a mediocridade e suavizar a couraça da solidão – um reinado de suaves sentimentos inimagináveis.
Consoladora arte, dom predestinado que nos faz coadjuvantes e cúmplices da essência da beleza - transcendência de puro êxtase.
A música sempre me fascinou e com certeza, também, a todos os que se agrupam em torno dos músicos que, através de suas flautas derramam os fluidos sons, trescalando e magnetizando o ar. É como se fosse estar em lugares outros e o destino fosse menino e nós todos, os afortunados, a voltear brandos, em outras esferas e eras.
Algo sagrado que comove e vai penetrando através dos músculos e do sangue a nos levar além, em plagas outras, transformando nossa alma num lugar seguro e precioso, onde os anjos possam vir a descansar.
Amplitude invisível, círculo perfeito de repouso, catarse purificadora, a música, com certeza, realça regiamente, com lirismo, o longo poema da vida que escrevemos.
Intocado, ilibado e velado sentimento percorre as sinuosidades e as silenciosas veredas da alma e dominado pela cena perfeita, imprime ardilosamente, passageiro e cauteloso otimismo, pois, toda beleza tem limites sobre nós.
E, assim, remida do quinhão da solidão, entusiasmada abro a janela e deixo entrar, com plenitude, o barulho animado dos passantes e a lírica melodia – dádiva e eloqüente afirmação de que nos requintados ou solitários momentos da vida sempre existirá a sombra protetora e o amparo de um Deus generoso.
Poesia sem palavras, feita guerreira dos ventos ou como Rei Midas, quero, mesmo que em pensamento, ali nesta praça, transformar o monólogo em ouro estabelecendo um diálogo com a vida, e em homenagem a beleza insuperável do momento, inundar meus sentimentos à luz gloriosa dessa tarde feiticeira.